No aniversário de São Paulo, um corre surpreendente por ícones paulistanos, em fotos feitas com drone e comentadas por Facundo Guerra. E com programas daora sugeridos por Matthew Shirts.
Em 2011, durante um jantar na Liberdade, bairro paulistano de forte ascendência asiática, o casal de namorados Fabrício Corsaletti e Mari Rocha combinou de passar um fim de semana ali mesmo, na condição de turistas, como se estivessem em visita a outra cidade. Na época, Mari, que é professora de moda na Faculdade Santa Marcelina, morava em Perdizes, zona oeste de São Paulo. Fabrício, poeta e escritor, autor do premiado Esquimó, trabalhava na Editora 34, de livros, e morava no bairro de Pinheiros. Os dois bairros ficam a 6 quilômetros da Liberdade. Chega-se de metrô ou de táxi em menos de uma hora.
Fabrício levou uma mala ao serviço na sexta-feira. O combinado era se encontrar com Mari no Nikkey Palace Hotel, na Rua Galvão Bueno, às 19h30. Ficariam lá, sem sair da Liberdade, até segunda-feira cedo. A regra era clara. A única exceção permitida pelo acordo era no caso de emergência médica familiar. O passeio ia muito bem, uma delícia. Aproveitaram a estadia para entrar em lojas e galerias, admirar roupas, adereços, cosméticos, produtos culinários, joias e espadas de samurai.
Visitaram os mercadinhos, que primam pelos produtos importados e estocam frutas e legumes menos conhecidos. Comeram em restaurantes até então desconhecidos, recomendados pelos funcionários do hotel. Conversaram com os sushimen. Desvendaram alguns dos mistérios gastronômicos do pequeno edifício na Rua da Glória, 111, onde estão escondidos o Sushi Isao, o Suriyaki e o Mugui, entre outros. Passearam sem pressa pelo bairro, certamente um dos mais ricos, culturalmente, de São Paulo. Sentiram-se quase como se estivessem em uma cidade japonesa, do outro lado do mundo. Corria tudo certo, até a ligação da Paula Miraglia, uma amiga querida.
Paula estava de partida para uma temporada no Canadá. Convocou o casal para sua festa de despedida, num bar no bairro de Pinheiros, naquele mesmo fim de semana. Fabrício explicou que eles não poderiam comparecer. Estavam, com o perdão do trocadilho, presos na Liberdade, e relatou os termos da “viagem” para a amiga. Paula achou a desculpa duvidosa, para não dizer esfarrapada. Mas, ao fim, remarcou o bota-fora para um dos lendários karaokês da Liberdade. O casal de turistas pôde comparecer. Foi ótima a festa, com a vantagem de que puderam voltar depois, a pé, ao Hotel Nikkey.
Adoro contar essa história. Primeiro, por achar divertida a ideia de passar um fim de semana viajando no Centro da própria cidade. São Paulo é tão grande e diversa que se presta a isso. Melhor ainda é o fato de que não foi apenas um fim de semana de descanso em um spa ou resort, mas uma viagem para conhecer uma cultura exótica, a 6 quilômetros de casa.
A RECRIAÇÃO DE SP
Considerar São Paulo um destino turístico é um sentimento mais ou menos novo, creio. Nas últimas décadas do século 20, era comum apresentar a cidade como um lugar bom para trabalhar ou estudar, ou as duas coisas, mas indiferente ao lazer. Era o túmulo do samba. Não tem praia. Programa de paulista, se dizia, em tom de rivalidade municipal e gozação, era lavar o carro aos domingos. Nas férias e folgas, a população fugia para Peruíbe ou Guarujá ou Santos, descia para o Litoral Norte ou se refugiava nas montanhas, Campos do Jordão, Monte Verde ou, mais recentemente, Gonçalves.
A minha tese é a de que isso mudou. Hoje há uma vontade renovada de aproveitar São Paulo como espaço de lazer. Ainda se busca refúgio fora dela, é claro. Mas basta ver o movimento da Avenida Paulista aos domingos, quando é fechada a carros, para constatar a demanda por lazer dentro da cidade. A Paulista lota. A animação é contagiante e simples, com conjuntos de diferentes tipos de música espalhados ao longo da via, aulas de ginástica e até pequenos desfiles. É uma movimentação própria de São Paulo. Eu não conheço nenhuma combinação de gente igual. Embora haja lotações até maiores no Parque Ibirapuera ou no Villa-Lobos. E o movimento no Minhocão no fim de semana, sem automóveis, tampouco é pequeno.
Essa vontade de se apropriar de São Paulo transparece nas fotos desta reportagem, que buscam a beleza nem sempre óbvia da nossa cidade em ângulos inusitados, capturados com o auxílio de drones. O autor delas, Facundo Guerra, um argentino que veio ainda criança para São Paulo, foi um dos responsáveis pela revitalização da região do chamado Baixo Augusta (no Centro), ao abrir clubes noturnos como Lions. Achou um ponto esquecido no coração da cidade, o Mirante 9 de Julho, e fez dele um lugar de encontros, com um café gourmet, o Isso É Café, e restaurantes que se revezam ali em períodos de dois meses.
Guerra reformou um cinema antigo na Liberdade e o transformou na casa de shows Cine Joia. Recuperou, para as gerações atuais, o clássico bar da década de 1940, o Riviera, na esquina da Consolação com a Paulista. Vencedor da disputa pelo uso do subsolo do Theatro Municipal de São Paulo, marco arquitetônico da cidade, inaugurou em janeiro de 2019 o “Bar dos Arcos” no Salão dos Arcos. Percebe-se nesses empreendimentos o esforço para recuperar pontos históricos paulistanos, reforçando nossa renovada identidade metropolitana.
Facundo Guerra é um dos seus criadores. Suas fotos parecem ser uma nova geração de cartões-postais. Dão essa impressão. A de alguém que não se satisfez com os cartões à venda na banca de jornais e resolveu refazê-los por conta própria e postar no Instagram. O uso do drone gera essa estética monumental, narrada em terceira pessoa, que tudo vê ou pelo menos vê mais que a gente. Captura Lina Bo Bardi, a maior arquiteta da cidade, no detalhe. Fixa o espírito de um prédio ocupado no bairro da Sé através do entusiasmo de um morador.
Apresenta a nova poesia da Ipiranga com a São João. Mostra a cúpula retrô- -inovadora do Conjunto Nacional que quase ninguém conhece. Refaz o retrato clássico das nossas brutais diferenças sociais na Favela de Paraisópolis, homenageando uma obra do fotógrafo Tuca Viera. E mostra a alegria de estar no último andar do tão paulistano Terraço Itália. Dá vontade de imprimir as fotos em formato de cartão-postal e distribuí-las pelas bancas de revistas da cidade. Taí uma ideia para Facundo.
RONDA GASTRONÔMICA
A identidade de São Paulo está cada vez mais ligada à gastronomia. Come-se bem na cidade, com uma variedade que resulta do feliz encontro das nossas tradições de migrantes e imigrantes, por um lado, com a gastronomia cosmopolita da última etapa da globalização, por outro. Para quem, como eu, chegou da Califórnia na década de 1980, a transformação culinária na cidade é espantosa.
A popularização da comida japonesa nos trouxe ou tornou célebres restaurantes excepcionais como o Jun Sakamoto, no bairro de Pinheiros, ou o Shin-Zushi, no Paraíso, e tantos outros, mais em conta, espalhados pela cidade. Aprendemos a amar, também, os botecos japoneses, os izakayas, como o Issa e o Kintaro, na Liberdade, o Tan Tan Noodle Bar, uma versão mais nova-ioquina do boteco japonês, em Pinheiros, e o Yorimichi, no Paraíso, tal como as casas de lámen, bons e muitas vezes mais baratos que outros japoneses. Vale mencionar o Aska, na Liberdade, ou o JoJo Ramen, no Paraíso.
Apresento, junto com o jornalista Eduardo Barão, um programa de rádio, de poucos minutos, na BandNews FM, dedicado a atrações da cidade. Muitas das nossas dicas são restaurantes. A lista de lugares bacanas é interminável. Gosto de brincar com Barão, com a autoridade de um americano nato, que São Paulo se tornou de uns anos para cá a capital mundial do hambúrguer.
O meu favorito é o Big Kahuna, homenagem ao diretor de cinema Quentin Tarantino. Quem é fã do clássico Pulp Fiction talvez se lembre da cena em que o ator Samuel L. Jackson experimenta um hambúrguer da “rede havaiana Big Kahuna”. A tal rede nunca existiu. É obra da prolífica cabeça do cineasta. Mas há um restaurante tributo na cidade onde passam seus filmes em looping.
Dizer qual é o melhor hambúrguer de São Paulo é chamar polêmica. Tem o Frank & Charles, em Higienópolis, e o Z-Deli, com lojas nos Jardins e em Pinheiros. Hambúrguer pode e é discutido bairro por bairro em São Paulo. Na Mooca, o povo leva sanduíches a sério e o Cadillac Burger é um dos destaques. No mesmo bairro, tem o restaurante Hospedaria, que pauta seu cardápio nas comidas dos imigrantes de São Paulo, servidas sob pé-direito altíssimo de uma fábrica antiga, com som da Motown – e fica próximo a uma estação da pitoresca linha de trem da CPTM.
E não se pode falar da identidade culinária paulistana sem passar por sua influência mais forte, a italiana. Praça de alimentação gigantesca, o Eataly, no Itaim, é uma homenagem à altura da contribuição imensa da colônia para a cultura da cidade. O simpático Pasquale, do meu amigo Pasquale Nigro, na Vila Madalana, também. Outra comida fortíssima em São Paulo é a de origem árabe, com destaque para o elegante restaurante Arábia, nos Jardins, entre centenas de outras. As casas do chef Alex Atala, símbolo de gastronomia paulistana, como o D.O.M. e o Dalva e Dito, levaram a culinária brasileira a um patamar novo.
Não é só de comida que vive São Paulo, mas eu diria que a alimentação vem contribuindo para a consolidação da nossa autoconfiança. A cidade só melhora ao longo das últimas décadas. E olha que não falei sequer dos restaurantes vietnamitas, coreanos, tailandeses, portugueses, franceses, nordestinos, mineiros, argentinos, peruanos, mexicanos, nem dos cafés chiquérrimos, como o Um Coffee Co., no Bom Retiro, ou o Coffee Lab, na Vila Madalena (que descobri no site da National Geographic americana, pode?). Há, ainda, um guia de restaurantes fora do chamado centro expandido. Chama-se Prato Firmeza – Guia Gastronômico das Quebradas, e lista onde comer bem na periferia.
MUITO PRA VER
Mas São Paulo não é só comida. Há diversão também. Sempre que vem um gringo me visitar faço o possível para levá-lo a um jogo do Corinthians no Itaquerão, estádio onde se abriu a Copa do Mundo de 2014 e foram jogadas várias partidas nas Olimpíadas de 2016. Isso porque torço pelo Timão. Mas vale e muito assistir a um jogo do Palmeiras no Allianz Park ou na arena do São Paulo, no Morumbi – ou a qualquer partida no estádio mais bonito de todos, o Pacaembu, onde fica o simpaticíssimo Museu do Futebol.
Os museus da cidade vivem uma fase sem igual. Abriram, em 2017, dois novos centros culturais ao público na Avenida Paulista, o Instituto Moreira Salles e a Japan House – que têm exposições de nível mundial (e contam com restaurantes ótimos, o Balaio e o Junji Sakamoto, respectivamente). Em meados de 2018, o Sesc inaugurou uma nova unidade na avenida que, além dos programas habituais – exposições, peças de teatro, biblioteca –, possui uma linda vista da cidade.
Na Paulista, há ainda o Masp e o Fiesp, ambos em grande fase, e também o Instituto Itaú Cultural. No Parque Ibirapuera, vale uma visita ao Museu de Arte Moderna e ao Museu de Arte Contemporânea USP (e ao restaurante dele, o Vista Café), sem falar do extraordinário Museu Afro Brasil, que traz a história do barroco e da escravidão no país. O Instituto Tomie Ohtake, um dos monumentos arquitetônicos da cidade, também tem exposições de primeira linha.
Para o turista, o pior de São Paulo é o trânsito. A melhor maneira de evitá-lo é andar sempre que possível de metrô e ônibus. E, se você tiver tempo para só um programa na cidade, sugiro andar de bicicleta na Avenida Paulista, no domingo.
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