No filme P.S. Eu Te Amo, sucesso de 2007, Gerry (Gerard Butler) canta Galway Girl num pub. A música diz: “Eu dei um passeio pela antiga The Long Walk / Conheci uma menina, e nós paramos para conversar”. Ele dedica a canção a Holly (Hilary Swank), que veste um casaco pesado e segura um pint de Guinness, cena clássica irlandesa.
A The Long Walk da canção é um promenade do Rio Corrib que encontra, na extremidade da rua, o Spanish Arch, um dos dois arcos remanescentes da muralha que circundou Galway a partir de 1270. Originária de uma vila
de pescadores chamada The Claddagh, a quarta maior cidade da Irlanda tem apenas 79 mil habitantes e fica 208 quilômetros a oeste de Dublin, às margens do Atlântico Norte.
Típico lugar em que os moradores param o que estão fazendo só para levar um turista perdido a seu destino, Galway mantém vivas tradições vetustas, como a confecção manual do Claddagh Ring, anel em que duas mãos seguram um coração sob uma coroa – símbolos, respectivamente, de amizade, amor e lealdade. Dependendo da mão em que a joia é usada e da direção que o coração aponta, seu portador está solteiro ou namorando, é noivo ou casado.
Tradições assim, datadas de pelo menos três séculos, ganham sentido num lugar com ruas de paralelepípedos labirínticas e becos místicos onde ainda se fala o gaélico, a língua nativa da Irlanda. Antropológico ao ouvido forasteiro, o idioma só acentua a originalidade de Galway.
Que não se engane, porém, quem acha que vai morrer de tédio por lá. Com um quarto da população estudante, a cidade tem pubs de fachadas tão coloridas quanto a animação de seus frequentadores, sempre embalados por pints de Guinness e música ao vivo. Lembra do filme?
Bônus: os penhascos à beira-mar de Cliffs of Moher, a atração natural mais famosa da Irlanda, ficam a apenas 75 quilômetros, e lá vamos nós dar aquela esticadinha. Único trajeto motorizado de uma viagem em que tudo pode ser feito a pé, o passeio cai como uma luva num fim de semana prolongado por Galway, como você confere a seguir.
DIA 1
10h – Galway of life
O ponto de partida é o Eyre Square, um parque retangular no centro da cidade. Ali há dois monumentos importantes para os moradores: a Quincentennial Fountain, na qual a escultura metálica representa um barco de pesca tradicional de Galway, e a Browne Doorway, a portada original de uma mansão do século 17, com as colunas que sustentam a marquise e até a bay window superior.
Ande até a extremidade noroeste da praça, entre na Williamsgate e siga em direção à Shop Street, a principal via de compras da cidade, onde só circulam pedestres e carros de entrega. No caminho, as estátuas do escritor irlandês Oscar Wilde (1854–1900) e seu colega estoniano Eduard Vilde (1865–1933) dividem um banquinho de granito – e quase o mesmo sobrenome.
Curiosamente, não se sabe se eles realmente chegaram a se conhecer, embora haja uma escultura semelhante da dupla em Tartu, na Estônia. Se estiver frio, aviste o café Butlers e não saia de lá sem um cookie hot chocolate, em que a bebida fumegante vem incrementada com pedaços de biscoito.
Uma vez na Shop Street, atente para os artistas e músicos de rua de Galway, de afamado talento, e localize o Lynch’s Castle. Hoje ocupado pelo AIB Bank, o caixotão de cantaria foi outrora a casa da família mais poderosa da cidade, como atesta a imponente fachada do gótico irlandês.
13h – Tapas irlandesas
Para uma refeição tipicamente irlandesa, siga até o pub The King’s Head, na continuação da Shop Street. No prédio do século 13, a fachada relativamente estreita engana, ocultando três espaçosos andares com arquitetura medieval preservada (a despeito das TVs sempre ligadas na programação esportiva).
Para comer, algumas boas pedidas são o cozido irlandês, que leva cordeiro e batatas, e, para dividir, as tapas irlandesas, uma versão dos aperitivos espanhóis com filé de frango, salsicha, onion rings, legumes e fritas.
14h30 – Colombo
Já de barriga cheia, ande por 2 minutos até chegar à medieval St. Nicholas’ Collegiate Church, de 1320, a única igreja episcopal anglicana de Galway. Do lado de fora, repare nas esculturas ora zoomorfas, ora mitológicas de criaturas como as duas sereias, o dragão, o leão e a série de gárgulas com cabeças humanas e equinas.
No interior, onde Cristóvão Colombo teria orado durante uma visita à cidade em 1477, o cão esculpido na pia batismal testemunha o sacramento de estreia dos novos cidadãos de Galway há 400 anos, enquanto o túmulo de Adam Bures, datado do século 13, o identifica como “O Cruzado”. No site da igreja, clique em Events para conferir a programação de corais e missas.
17h30 – Pizza com pub
Volte para a rua do The Kings Head para comer bem e barato na pizzaria Fat Freddy’s. Com clima aconchegante e toalhas xadrez nas mesinhas, a casa vende bem a clássica margherita, feita com molho de tomate caseiro, e a special vegetarian, que leva pimentão, milho, cogumelo, cebola e abacaxi.
Em seguida vá ao pub The Quays, separado da Fat Freddy’s apenas por um edifício. Sucesso entre locais e turistas, o bar toca o velho rock’n’roll, além de country irlandês, ao vivo, todas as noites, num interior com partes trazidas de uma igreja medieval francesa, como o vitral, os arcos góticos e a madeira entalhada. Nas mesinhas externas, a distração é ver o vai e vem dos transeuntes da Quay Street.
DIA 2
10h – Salmos e salmões
Você tomou algumas na noite anterior, dormiu tarde, a cidade é pequena, e são suas férias – logo, por que madrugar? Sem pressa, comece o dia na Galway Cathedral, a mais jovem catedral de pedra da Europa, consagrada em 1965. A construção, em formato de cruz, fica na margem oeste do Rio Corrib.
Logo em frente, na Salmon Weir Bridge, de 1818, observe os pescadores de salmão trabalhando em meio às águas revoltas do Corrib, uma cena de Galway que deixa os espectadores embevecidos.
12h45 – Orgânico cool
Volte à margem do rio onde fica a catedral e caminhe por 1 quilômetro na direção sul para almoçar no Kai Cafe + Restaurant, na Sea Road.
Conhecido por estar à frente do movimento pela comida orgânica na Irlanda, o local é uma espécie de bistrô hipster, com paredes de pedra, móveis de madeira de demolição, cadeiras em tons cítricos e uma lousa que anuncia os pratos do dia.
São boas as opções do menu fixo do almoço, como a salada de caranguejo com semente de papoula, pepino e maionese de abacate, acompanhada de batatas e bolinhos de cheddar e a lentilha com brócolis, salada verde, chutney de damasco e pão com aroma de nozes.
Em seguida, para uma sobremesa menos light, vá até a casa de chá The Secret Garden, na mesma rua. Narguilés, almofadas coloridas, luzinhas, instrumentos musicais e chaleiras antigas decoram esse chill out de tintas zen, ponto de encontro de grupos de leitura e endereço usado pelos tatuadores de henna para oferecer seus serviços.
Logo na entrada o cliente escolhe entre 30 sabores de chás à base de ervas, flores e frutas. Antes de se acomodar na mesa à espera da bebida, porém, namore a vitrine de bolos e tortas e peça a cheesecake de merengue de limão, uma paixão à primeira mordida.
14h30 – Cartões-postais
Atravesse a Wolfe Tone Bridge para chegar ao Galway Civic Trust, na Druid Lane. Ali fica o Hall of the Red Earl, sítio arqueológico do século 13 que está ligado à fundação da cidade.
Primeiro edifício municipal de Galway, o Red Earl era usado para arrecadar impostos e sediar banquetes, entre outras funções administrativas e cerimoniais. De lá, siga para o Spanish Arch, aquele arco de pedras que remonta aos primórdios da cidade, na The Long Walk, a 3 minutos de caminhada.
Junto ao arco, o Galway City Museum exibe achados, relíquias e outros objetos que recontam a história local pela ótica da arqueologia, geologia, arte, cultura e sociologia.
No fim da tarde, numa caminhada de 1,5 quilômetro, atravesse a Wolfe Tone Bridge de volta, siga pela Father Griffin Road e continue na Whitestrand Road até Salthill, área à beira-mar com uma poética prainha de pedras, vista para a Baía de Galway e calçada largamente frequentada pelos adeptos de corridas e caminhadas.
18h – Puro purê
Para jantar e entornar uns drinques num lugar só, descanse as pernas no pub The Front Door, na mesma rua do The Kings Head e do The Quays. Com dois andares e cinco bares, a casa tem clima de paquera e atrai irlandeses arrumadíssimos, trajados com camisa social e até vestido de festa.
Peça o beef & Guinness stew, carne bovina cozida lentamente em cerveja stout e acompanhada de purê de batata, molho e legumes assados. Ou então o The Front Door’s shepherd’s pie, que leva carne de cordeiro picada e legumes cobertos também com purê de batata – você não precisará de 72 horas em Galway para perceber que, assim como a Guinness, os irlandeses meio que curtem batatas.
DIA 3
8h – Cliffs of Moher
Acorde cedinho para pegar o ônibus para Cliffs of Moher, conjunto de falésias que chegam a 214 metros de altura e se estendem por 8 quilômetros da costa atlântica.
Atração natural mais visitada da Irlanda, o acidente geográfico guarda evidências de que já era habitado no século 1º antes de Cristo. Do alto de seus penhascos, rezam as lendas, teriam sido avistadas uma sereia e uma enguia devoradora de mortos.
Compre a passagem (cerca de € 23 incluindo a volta) com antecedência no site da Bus Éireann para o primeiro horário (8h), a tempo de aproveitar o dia todo, lembrando que cada trecho da viagem dura 2 horas e 15 minutos – são 75 quilômetros desde Galway.
Os ônibus saem da Bus Station, relativamente perto do Eyre Square. É recomendável levar roupas térmicas, pois chove e venta com frequência na região, pelo menos uma garrafa d’água e um lanchinho. O café e o restaurante do centro de visitantes resolverão o seu almoço.
19h – Folga de Guinness
Depois de um dia inteiro fora, cai a noite em Galway e, como bem sabemos, é hora de relaxar com um pint ou um drinque qualquer na mão.
Boa pedida para se despedir da cidade, o Tigh Neachtain, na Cross Street, é um pub que, além da óbvia Guinness e de outras conhecidas brejas irlandesas, traz na carta três cervas produzidas na própria casa, além de mais de 130 tipos de uísque.
Para jantar, considere o hadoque defumado com aspargos, feijão-verde e salada de espinafre. Sem batatas.
Publicado na edição 253 da revista Viagem e Turismo
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