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Não falar a língua local pode trazer ótimas surpresas

Dizem os especialistas que mais de 60% da comunicação humana é não verbal. Ou seja: não saber a língua dos outros pode até ajudar a descobrir coisas ótimas

Por Inês Pedrosa
Atualizado em 4 abr 2020, 14h52 - Publicado em 30 set 2019, 19h08

Se eu soubesse falar russo, não teria descoberto que o café quente é a bebida mais eficaz para nos refrescar em um dia de calor tórrido. Estava eu na Praça Vermelha de Moscou, em um junho escaldante da era final da Perestroika, nos idos de 1986. Entrei em um café e pedi água em todas as línguas que conhecia – por junto, cinco. A senhora atrás do balcão mantinha-se interdita a olhar para mim. 

Não trazia papel nem caneta, e ali havia apenas um ábaco com bolinhas de cor que fazia as vezes de calculadora – nada em que se pudesse desenhar uma torneira a correr ou um copo. Fiz o gesto de beber e esforcei-me por esboçar no ar um cubo de gelo. Acabei por receber uma chávena de café a ferver: bebi-a de um trago, e não só me passou a sede como a sensação de calor. O valor educativo da ignorância é amplamente subestimado.

Nessa época, os russos, que então se diziam soviéticos, de uma maneira geral não sabiam falar inglês. Mesmo que soubessem, evitavam ser vistos a falar com turistas para não levantar suspeitas acerca de tentações capitalistas. De modo que, quando me perdi do grupo no metrô de Moscou, passei mais de duas horas pensando que ficaria para sempre desaparecida naquelas maravilhosas catacumbas – todos aqueles de quem me aproximava para pedir informações fugiam de mim assim que percebiam que eu era estrangeira.

O alfabeto cirílico não ajudava na orientação – e todas as informações e placas estavam apenas em cirílico. Acabei por descobrir a estação de metrô de onde partíramos e esperei que alguém se lembrasse de me procurar ali – o que acabou por acontecer. Eu levara um manual desses instantâneos, com frases úteis para o dia a dia. Uma delas era “Quero enviar um telegrama”, e eu pensei que resolveria assim a mensagem de parabéns que queria enviar à minha mãe pelo seu aniversário, dado que os telefonemas internacionais, no hotel, pareciam não funcionar. Não havia ainda celulares. 

Dirigi-me a uma estação de correios e pronunciei a frasezinha em russo, tal como vinha no livro. Funcionou: a empregada dos correios respondeu-me com uma pergunta prazenteira, que obviamente não compreendi. Claro que ela não percebeu porque é que eu não a compreendia, dado que tinha falado com ela em russo. Os autores desses manuais esquecem-se sempre desses detalhes. Voltei à linguagem gestual e, depois de uma esforçada dança braçal, lá me fiz entender.

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Dizem os especialistas que mais de 60% da comunicação humana é não verbal. Há experiências curiosíssimas de terapia de grupo em que as pessoas são convidadas a escolher seu par, em uma sala cheia de gente, sem falar: apenas por meio do gesto e do olhar. Resulta que as pessoas escolhem outras pessoas que, na análise, demonstrarão ter os mesmos tabus e problemas no fundo oculto dos seus ecrãs. 

Por conseguinte, a incomunicabilidade linguística não impede a cumplicidade. Experimentei-o no ano 2000, em um comboio (ou trem, em brasileiro) de escritores que atravessou a Europa, conversando animadamente com três escritores tchecos que não falavam nenhuma outra língua. Olhavam para o livro que eu estava a ler e diziam: “Ah, Tolstoi!”, erguendo o dedo em aprovação. Depois enumeravam os seus escritores favoritos, criávamos coreografias gestuais, e a coisa corria bem. Sobretudo, aproximavam-se para me ajudar a carregar as malas de comboio para comboio, o que valia mais do que mil palavras.

Queres ligar – ou transar?

É com as línguas próximas que as coisas se complicam. Certa vez, falhei um almoço com Saramago e Pilar del Rio apenas porque fui acenando com a cabeça enquanto Pilar falava a 200 quilômetros por segundo, que é o seu ritmo. Não quis dizer-lhe que não estava a perceber patavina, fui acenando como um cachorrinho mecânico – e não entendi que estava a responder que, sim, iria almoçar lá em casa daí a dois dias. Desde então, digo logo, no meu melhor espanhol: “De espacio, que no entiendo”. 

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Com o espanhol, que os portugueses estão convictos de trazer nos genes, tenho sofrido equívocos sucessivos: além do clássico esquisito, que em português significa “estranho” e em espanhol significa “requintado” (um amigo espanhol jantando em minha casa dizia-me que a comida estava esquisita, e eu respondia, um bocadinho ofendida, que a mim não me parecia estragada), já tive problemas com o verbo ligar, que em espanhol designa aquilo a que em brasileiro se chama “transar”.

No tal trem da literatura, como o meu colega espanhol dissesse que precisava fazer um telefonema, eu, que tinha o celular na mão, perguntei-lhe: “Queres ligar?” O homem, que não era tímido, corou do bigode aos cabelos e respondeu-me, com uma tocante espontaneidade: “Já? Mas a viagem ainda mal começou…” Acabou por ser o início de uma bela amizade.

O inglês é o latim contemporâneo, o esperanto que deu certo – mas, mesmo nessa língua econômica, nem sempre a comunicação é fácil. O inglês da Inglaterra e o inglês da América pertencem a mundos sonoros completamente distintos, e um lusófono habituado a decifrar filmes de Hollywood não terá a vida fácil em um pub londrino. 

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O universo dos sotaques é tão vasto como o das línguas. Muitas vezes me tem acontecido, no entusiasmo de uma conversa com amigos brasileiros, perceber que os sobrolhos se vão franzindo dolorosamente à medida que vou acelerando, trucidando as vogais, tão amadas no hemisfério sul da Língua.

Mas o código dos afetos acaba quase sempre por nos salvar: um sorriso não tem gramática nem declinações. Um abraço absorve todos os silêncios – mas é preciso cuidado, porque há muitas línguas que não absolvem os abraços.    

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