A pandemia de coronavírus virou o mundo de ponta cabeça. Entre os muitos efeitos da crise, países fecharam suas fronteiras, voos foram cancelados em massa e milhares de pessoas precisaram desistir ou adiar os seus planos de viagem por tempo indeterminado. Porém, quem já havia partido – em viagens de férias, a trabalho, para estudar ou até morar fora – agora se vê preso em um drama que parece interminável: a volta para casa. É o caso de quase 7 mil brasileiros em 80 países diferentes, que por dias a fio tentam voltar para casa sem sucesso, pela falta de voos e recursos.
Uma das saídas em meio à restrição do espaço aéreo e o cancelamento constante dos voos comerciais é a repatriação – voos especiais, negociados pelo governo brasileiro junto às empresas e às autoridades de outros países. Nesses casos, a retirada dos cidadãos é feita por voos fretados ou operados pelo próprio governo, como foi o caso de brasileiros resgatados por aviões da Força Aérea Brasileira no Peru e na China.
No entanto, a estratégia não está sendo adotada em massa. Segundo o Itamaraty, a prioridade é acomodar brasileiros em voos comerciais ainda em operação – o que não é uma opção viável para algumas pessoas no exterior.
É o caso de Andreia Costa, analista de projetos que está neste momento retida na Tailândia junto de mais 160 brasileiros. Desde fevereiro pelo Sudeste Asiático, a goiana não consegue remarcar a sua passagem cancelada, comprada por uma agência de viagem online, a eDreams. “A agência não me atende, não responde os posts no Facebook nem e-mails. Já fiquei duas horas esperando ser atendida e nada. A companhia diz que não pode fazer nada porque eu comprei por agência”, ela diz.
Comprar um novo bilhete está fora de cogitação, segundo Andreia, já que as empresas que continuam operando colocam o preço das passagens lá em cima: um voo fretado da Ethiopian Airlines, oferecido pela embaixada brasileira em Bangkok, sairia R$ 10.500 por pessoa – mas foi cancelado pela baixa procura.
A brasileira também ressalta a incerteza de comprar e não saber se irá embarcar ou não, já que muitos voos estão sendo cancelados. Nesta situação, o dinheiro é quase dado como perdido. Isso porque o reembolso pode acontecer até 12 meses depois – quando ele está disponível. Em outras situações, apenas é possível solicitar a remarcação ou o recebimento de um voucher na mesma companhia. “Teve gente com a primeira passagem cancelada que, desesperada, comprou outra. O voo foi cancelado novamente e a pessoa gastou o que não podia”, explica Andreia.
Longe de casa e sem dinheiro
Para pessoas com dificuldades financeiras, a repatriação sem custos é a única saída para voltar para casa. O personal traveler Adriano Leal, de 28 anos, estava na Tailândia a trabalho desde o final de janeiro. Foi da capital Bangkok que o baiano presenciou o avanço do coronavírus pelo mundo – especialmente na Itália, o principal foco dos seus clientes. “Os turistas que iriam para Roma, pro Vaticano, não vão mais. Todo o meu financeiro do ano foi perdido, porque todo mundo desmarcou. Mais de 120 pessoas”, ele conta.
Sem trabalho, Adriano diz não ter meios de sobreviver. “Estou vivendo de doações aqui na Tailândia. Caridade de amigos que podem me ajudar, mandando dinheiro virtualmente”, revela. Brasileiros que conseguiram voltar para o país também colaboram como podem, deixando o resto de suas diárias em hostels ou o que sobrou de bahts, o dinheiro tailandês, para ele.
O jovem também não consegue ir para lugar nenhum, já que sua passagem de volta tinha como destino a Europa – que fechou suas fronteiras para estrangeiros não-residentes. A solução para voltar para o Brasil seria comprar um novo bilhete, o que não é viável para Adriano pelos altos valores cobrados pelas companhias neste momento.
A condição financeira também o põe em uma situação de risco diante da pandemia. Hospedado num quarto de hostel com 10 camas amontoadas e um alto fluxo de turistas chegando e saindo, ele pode estar exposto ao vírus que é altamente transmissível. “A cara do Carandiru”, desabafa. Mas nada garante que a situação não possa se complicar ainda mais: vários hotéis e hostels estão fechando as portas – o que coloca a hospedagem na já grande lista de incertezas.
Apesar disso, Adriano ainda se considera privilegiado: depois de aparecer em algumas reportagens na mídia brasileira, ele foi contactado pela embaixada para receber auxílio financeiro. “É uma ajuda de custo de 3 mil bahts (em torno de 470 reais) por 5 dias, sendo 600 bahts por dia: 300 para acomodação e 300 para alimentação. Daqui cinco dias, o consulado não me deixou claro se vão me ajudar a continuar aqui ou não”, explica.
A solução dada pela embaixada depois do período de cinco dias foi entrar em contato com os amigos e familiares de Adriano para pedir ajuda financeira, o que ele rebate: “Eu tenho internet, posso ligar pra minha família, pra um amigo. A questão é que eles não têm condições de me ajudar”.
O baiano ainda conta que não é o único nesta situação de dificuldades e, entre o grupo de brasileiros retidos no país asiático, estão idosos, pessoas que tomam remédio controlado, mulheres grávidas e famílias com crianças. O pior de tudo é a incerteza de quando acontecerá o retorno: “O que a gente precisa agora é de uma solução, uma data, um dia – não dizer que a gente não é prioridade. Eu entendo, tem países que têm muito mais brasileiros. Mas qual é o valor da vida?”, questiona.
Ainda não há previsão de repatriação na Tailândia por parte da embaixada. Aqueles que conseguem voltar são pessoas que já possuíam bilhetes de volta para o país e foram realocados nos poucos voos restantes, ou têm condições de arcar com os valores altíssimos das passagens fretadas. O Itamaraty informou à Viagem e Turismo que, ao se esgotarem as opções comerciais, outras alternativas serão consideradas para o retorno dos cidadãos, “no prazo mais curto possível”.
Questionado sobre os brasileiros em situações de dificuldade fora do país, o ministério de Relações Exteriores afirmou que quem se encontra nessas condições deve entrar em contato com o consulado ou embaixada da região. Segundo o órgão, em várias ocasiões, representantes fizeram repasses de dinheiro para os necessitados, entraram em contato com alojamentos e têm buscado facilitar o acesso a remédios controlados para quem precisa.
A ânsia pela volta
Tudo o que Marina* e mais quatrocentos brasileiros retidos na Austrália querem é voltar para casa. Depois de um intercâmbio de oito meses no país, a bancária já tinha data marcada para retornar, no dia 25 de março, mas no dia 20 o governo australiano fechou as fronteiras e seu voo foi cancelado.
Acionado, o consulado afirmou que não há planos de resgate de brasileiros na Austrália, ainda que voos comerciais continuem operando. Mas não é bem assim que a situação se desenrola para Marina: depois de três dias tentando entrar em contato com a Latam, ela foi informada que não seria possível remarcar sua passagem, já que não havia mais nenhum assento disponível.
A única outra opção de voos era da Qatar, no valor de 15 mil dólares australianos – quase 48 mil reais. “É impossível pagar este valor. Podemos pagar por um voo normal, não pelo preço de um carro”, ela evidencia.
Morando de favor na casa de uma amiga, a bancária diz estar sem trabalho e está economizando tudo o que pode, já que é impossível prever quando a situação será resolvida. A falta de controle incita o medo: “Tenho medo de não conseguir voltar pra casa, de não ver minha família, do governo nos abandonar aqui. Estamos desesperados”, confessa.
Em Portugal, Ana* viu uma oportunidade virar crise. Junto com seu marido e a filha de três anos, foi morar em Lisboa no começo de fevereiro, na busca por condições melhores de vida. O que era impossível de prever era a pandemia: o país confirmou o primeiro caso de coronavírus em 2 de março e no dia 18 declarou estado de emergência.
Ela vem tentando desesperadamente voltar para o Brasil desde o começo do mês. “Tenho medo de permanecer aqui e a gente ficar sem rumo. Antes de ficar pior, quero retornar. Pelo menos teremos parentes por perto”, afirma.
Com recursos limitados para se manterem em Portugal, e o agravante da quarentena, a família vê sua volta para casa como cada vez mais urgente. Porém, sem o apoio da embaixada – que não lhes dá uma resposta desde o início de março – a única opção seria um voo comercial.
Todo dia na busca por passagens, o alto custo os impede de realizar o seu desejo, já que apenas o marido conseguiu trabalho na capital portuguesa como soldador, e ela continua desempregada. “Para irmos embora, em três, é impossível pagar quando somente um trabalha”, desabafa.
Os que já estão entre nós
Segundo o Itamaraty, cerca de 8.600 cidadãos brasileiros foram repatriados desde o início da crise. Paula Pereira é um deles. Organizadora de viagens e tours pelo Marrocos, ela divide sua vida entre o Brasil e o país africano – e era lá que se encontrava quando a pandemia se alastrou.
Com a volta marcada apenas para maio, Paula teve que decidir entre ficar e voltar. Ao ver a possibilidade de um voo no site da embaixada brasileira, a escolha foi retornar para seu país natal. “Eu corria o risco de tudo piorar e não conseguir vir nem em maio. Não sabia quanto tempo a situação iria perdurar, já que o rei do Marrocos fechou o espaço aéreo. Neste momento, estar perto da família é muito importante”, ela conta.
Paula elogia o esforço e a comunicação por parte da embaixada. Quatro dias depois de entrar em contato, autoridades pediram para que ela se dirigisse à Marrakech, de onde sairia o voo de repatriação. Paula embarcou no voo fretado pela rede Record, que trouxe funcionários da emissora e mais 120 brasileiros presos no Marrocos – em uma ação conjunta do ministério das Relações Exteriores, a emissora de TV e a Latam, segundo divulgado pelo ministério do Turismo.
Ao chegar no Brasil, ela ficou dois dias em São Paulo antes de embarcar para Manaus, onde parte de sua família mora. Por lá, ela segue nos seus 14 dias de quarentena em um apartamento alugado para não expor seus familiares – aguardando ansiosamente o dia 6 de abril, quando o encontro finalmente poderá acontecer.
Já na experiência de Eduardo Lima, em Cusco, a comunicação teve suas falhas – tanto por parte da embaixada quanto da companhia aérea, no seu caso Latam. Para o bancário, os três primeiros dias foram bastante confusos. “Eles [da embaixada] não estavam preparados para a situação. Poderiam ter deixado a gente muito mais a par do que estava acontecendo, ter passado informações mais claras e que nos acalmassem”, afirma.
O campo-grandense estava sozinho no Peru a turismo desde o dia 11 de março. Até o dia 15, seguiu normalmente seu roteiro pelo país, repleto de turistas, mas foi na noite deste mesmo dia que o presidente anunciou estado de emergência e o fechamento das fronteiras. Com a medida, diversos voos foram cancelados e viajantes começaram a tentar remarcar seus voos para Lima, de onde seria mais fácil regressar ao Brasil.
“Tentei remarcar meu voo no aeroporto no dia 16, mas não consegui ser atendido no meio daquele tumulto e falta de organização. Era uma correria de todas as nacionalidades”, conta o bancário. Eduardo também não obtinha nenhuma resposta nos canais de atendimento da Latam. “Ficamos totalmente desamparados em Cusco”, ele revela.
No dia 20, voos de Lima para o Brasil chegaram a acontecer, enquanto não havia uma posição para quem estava em Cusco. “Você vai se angustiando. Quando que eu vou voltar? O dinheiro vai dar? A empresa vai entender e falar que eu posso trabalhar remotamente? Só incertezas”, Eduardo relata. Mas na tarde daquele mesmo dia, algumas respostas chegaram: um informativo da embaixada comunicou que no dia 21, às 11 horas, um voo humanitário da Latam retiraria os brasileiros em Cusco. O nome de Eduardo estava na lista de passageiros.
No dia seguinte, um sábado, ônibus escolares e caminhões do exército peruano os levaram até o aeroporto. A temperatura de todos os turistas foi medida logo na entrada. O tempo todo angustiado, ele diz que a tensão durou até o momento do embarque. “Quando eu entrei no avião, realmente veio uma vontade de chorar. Vi a angústia indo embora e, quando a gente pousou em Guarulhos, foi o fim de uma saga”.
Eduardo conta que praticamente todos os passageiros do voo eram clientes Latam. “Minhas colegas de hostel, que eram Gol e Avianca, ficaram”. Foi só no dia 25 de março que brasileiros que estavam em Cusco sem conseguir voltar foram resgatados, por dois aviões da FAB.
Ao sair do voo, ele diz que ficou surpreso ao ver a falta de controle no aeroporto. “Não houve nenhum formulário, ninguém perguntando o estado de ninguém, nenhuma recomendação. Até o free shop estava aberto, com as funcionárias sem máscara. Era outra realidade”, descreve o sul-matogrossense que, por iniciativa própria, está fazendo uma quarentena voluntária em sua cidade, Campo Grande.
Estou no exterior e quero voltar. O que fazer?
O ministério da Relações Exteriores garante que as representações brasileiras estão trabalhando para reduzir o tempo de retenção dos brasileiros no exterior em todos os países. “Todos os brasileiros retidos no exterior estão sendo considerados pelo Itamaraty e continuamos trabalhando, sem interrupção, para que aqueles que ainda estão enfrentando problemas em seu retorno possam se juntar aos nacionais que foram repatriados”, afirmou.
O Itamaraty orienta que cidadãos brasileiros que precisam de ajuda urgente no exterior preencham um formulário ou entrem em contato pelos números emergenciais dos consulados, para que assistência seja realizada. O ministério também recomenda o acompanhamento das suas redes sociais e as páginas de alerta do portal consular, onde serão divulgados voos de volta ao Brasil, medidas de apoio e informações sobre as restrições impostas em cada país. Mais informações aqui
A Anac também disponibilizou um formulário para identificar brasileiros que têm passagem aérea comprada e não estão conseguindo voltar para o Brasil. O objetivo é coordenar com as companhias ações para trazê-los de volta ao país.
*Nomes alterados a pedido das entrevistadas, que preferiram não se identificar para não alarmar as famílias no Brasil