Opera Samfaina: o restaurante mais bizarro dos últimos tempos em Barcelona
O lugar indefinível fica no subsolo do Teatre Liceu, a “ópera” Barcelona
Jordi, Josep e Joan Roca são as mentes brilhantes por trás do Celler de Can Roca que, desde 2011, vem se alternando entre a primeira e a segunda posição no sacrossanto ranking dos melhores restaurantes do mundo da revista britânica Restaurant. Agora, os irmãos podem se gabar de mais um feito: o restaurante mais bizarro do mundo. Se você acha que já viu de tudo em termos de “experiência gastronômica”, espere até conhecer Opera Samfaina.
Passei as últimas semanas tentando digerir o que vi (e comi) por lá. Em vão. O lugar indefinível fica no subsolo do Teatre Liceu, a “ópera” Barcelona. Daí a primeira parte do nome. Samfaina, em catalão, é um refogado de pimentão, cebola, alho, berinjela, abobrinha e tomate, que pode servir de molho ou acompanhamento em vários pratos catalães. Outra pista sobre o lugar: uma mistureba de referências e produtos que propõe uma insólita viagem às raízes da gastronomia da Catalunha. Até aí tudo bem? Então seguuura!
A “experiência” mais completa começa com a Odisea Catalana. Com hora marcada, cheguei à sala redonda, cercada por uma tela de alta definição de 360o, sem ter a menor ideia do que me esperava. Um mestre de cerimônia simpático e paciente explicou ao grupo que, ao longo do filme que assistiríamos, uma luz iluminaria partes da caixinha que tínhamos diante. Nesse momentos, deveríamos abrir as gavetinhas indicadas e degustar o que houvesse dentro junto com os vinhos enfileirados à nossa frente.
E eis que tem início um filme de 25 minutos protagonizado por um avatar de Jordi roca (o pâtissier do trio de irmãos) que conta a história da Catalunha com linguagem de ópera e estética Disney. Como se não bastassem as imagens vertiginosas do telão, também havia projeções psicodélicas na própria mesa enquanto tudo isso acontecia — contraindicado para epiléticos e quem sofre de labirintite. Num ritmo alucinante, as caixinhas se iluminavam sem que eu (que como rápido) conseguisse terminar de mastigar o conteúdo anterior. O mesmo congestionamento rolou com os vinhos. Começamos com um cava Gramona, passamos para um branco Montsant, emendamos em um tinto da Conca de Barberá e, depois disso, nem consegui registrar o que bebi. Apenas engolia e lutava para não morrer entalada. Acho que terminei empurrando o último pedaço de fuet (um embutido) esôfago adentro junto com um docinho que desceu do teto (sim) dentro de uma cesta no final da história.
Há três tipos de “experiências” que podem ser reservadas pela internet através da compra de entradas. Eu fiz a Odissea (€ 33), que inclui o “espetáculo sensorial e imersivo” relatado no parágrafo anterior e uma pequena degustação na vermuteria (que acabei perdendo porque cheguei em cima da hora do filme). A segunda modalidade é a Odissea amb Samfaina (€ 48), que além do pacote anterior também oferece duas tapas na “Barra Solidária”, onde os bocados levam a assinatura de chefs famosos e uma taça de vinho. Achei ambas as possibilidades caríssimas para as tapinhas medíocres que oferecem. Também é possível comprar um tíquete chamado Opera Prima (€ 19), que inclui uma seleção de tapas (mas sem o filme 360o). Ou você pode simplesmente entrar, comer e beber o que quiser e pagar à parte, com uma consumação mínima de €5. É o que vale mais a pena.
Saí da ópera do catalão maluco certa de que nada poderia ser mais insólito. Mas sim. A cenografia barroco-surrealista do lugar, dividido em salas temáticas, é obra de Franc Aleu. Além de colaborar com o grupo de teatro radical La Fura dels Bals (responsável pela abertura das olimpíadas de 1992 e por peças das quais você sai imundo e desejando voltar ao útero materno), o artista também concebeu e dirigiu de El Somni, o documentário com linguagem de ópera sobre o Celler de Can Roca. De sua mente fértil saíram instalações que não destoariam na Sapucaí. A pergunta é: você gostaria de jantar em cima de um carro alegórico da Beija Flor?
A crème de la crème é um colossal São Jorge (com a cara de Jordi Roca, de novo) montado sobre um dragão, cercado de três mil peças de cerâmica que reproduzem linguiças, salames e tripas que voam pelos ares. Só que o monstro tem cara de porco e, na cena em questão, está engolindo uma mocinha. Nada melhor para abrir o apetite.
E por falar em apetite… Jordi Roca, onipresente, também aparece na forma de caganer, personagem de nome autoexplicativo que representa a fertilidade na cultura catalã. A brincadeira, nesse caso, consiste em arremessar uma bola na boca do boneco que, ao invés do tradicional “adubo”, produz um bombom em forma de… COCÔ. Se o docinho parecer indigesto, deixe a sobremesa para a sorveteria Rocambolesc, a maravilhosa fábrica de sorvetes nada convencionais de Jordi Roca – o de carne e osso, para nossa alegria.
Na tal da Barra Solidária, as tapas são assinadas por chefs estrelados e o dinheiro arrecadado é revertido em benefício da ONG em que cerca de 80% do staff foi treinada. A ideia é fofa. Só que o sanduichinho de carne de porco criado por Albert Adrià não tinha a menor graça. E o fricandó de carne bolado por Nando Jubany tinha gosto de molho artificial. Maridão ainda encarou uns ovos com foie de autoria do Quim da Boqueria e passou a noite conversando com eles. Uma simples porção de patatas bravas salvou a noite, o que me leva a crer que o melhor, aqui, é se ater ao simples (ainda que os irmãos Roca tenham ajudado a montar o conceito e a carta, e que sejam os anfitriões virtuais da Opera Samfaina). Por quatro tapas divididas e três taças de vinho cada um, pagamos uns €50 (fora os € 66 das suas entradas à tal da Odissea). Preferia imensamente ter gasto esse dinheiro em um bom restaurante de Barcelona.
Faz mais sentido passar na Opera Samfaina só para tomar um drinque e matar a curiosidade. Mesmo que a comida fosse divina, é tanta informação, além da música bombando, que o lugar tem mais vocação de balada. Meu apetite, um gladiador implacável, saiu correndo com o rabinho entre as pernas depois da primeira mordida. Menos mal que não embarquei em uma das Divas, as mesas redondas “multissensoriais”, onde a degustação de tapas clássicas (€ 29) é sincronizada com uma série de projeções. Dá pra tomar um sal de frutas antes? Por outro lado, achei bacaninha o bar de vinhos, onde as denominações de origens catalãs estão representadas, incluindo o cava, o famoso espumante método clássico. Priorat ou Penedés? Costers del Segre ou Conca de Barberà? Na dúvida, aperte o botão da “roleta enológica” para escolher uma região na base da sorte.
Você me pergunta: vale a pena? Olha, acho que loucura do lugar tem seu valor. Definitivamente não há nada parecido nessa galáxia e alguns detalhes da cenografia são alucinações sóbrias, como a vaca mecânica que é uma fabriquinha de leite. Eu só acho que encaixar a comida no meio disso é forçar a barra. Até do ponto de vista fisiológico.
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